Tomada de posição dos Centros de Investigação sobre Formação Inicial de Professores

Por uma formação de professores de qualidade


A formação de professores constitui um fator determinante para a melhoria da educação, pois dela depende, em grande medida, a qualidade dos professores e do seu ensino. Neste sentido, a busca de soluções apressadas e pouco sustentadas, conceptual e empiricamente, para resolver problemas prementes e há muito diagnosticados, face à urgência de renovar o corpo docente e de recrutar professores em número suficiente para suprir as necessidades do sistema, põe em causa a qualidade da formação dos profissionais que devem assegurar a educação das crianças e dos jovens. A nível internacional, é reconhecida a melhoria da qualidade do sistema educativo português que se tem alicerçado, entre outros aspetos, na formação inicial e contínua dos professores, assente em práticas de investigação-ação e de reflexão permanente sobre o processo de ensino e aprendizagem. Embora se reconheça que há aspetos a melhorar, não pode, no entanto, ignorar-se a investigação existente neste domínio e o vasto corpus de produção científica que se vem acumulando e expandindo ao longo das últimas décadas, quer nacional, quer internacionalmente.


O ensino constitui uma profissão complexa e exigente que não se compadece com visões simplistas e redutoras baseadas numa racionalidade técnica através de uma formação mais pragmática e curta (on-the-job training). Formar professores não pode ser reduzido ao treino de competências; trata-se, antes, de um processo educativo que pretende desenvolver profissionais informados, altamente competentes, reflexivos e críticos (Loughran, Keast, & Cooper, 2016). Assim, um perfil profissional exigente pressupõe uma visão ampla de profissionalismo docente que não pode limitar-se à mera execução ou aplicação de diretrizes ou normas, mas que implica a consideração da profissão docente como profissão baseada no conhecimento e a valorização da dimensão universitária, intelectual e investigativa (Nóvoa, 2017). A produção científica sobre o processo de aprender a ensinar e sobre a formação dos professores aponta claramente para a natureza multifacetada do conhecimento profissional que, para além do domínio do conteúdo, inclui, entre outros, o conhecimento pedagógico do conteúdo, da pedagogia e da didática, da filosofia, da sociologia e da história da educação, do currículo, da inclusão socioeducativa, do contexto, do sistema educativo.


Ora, tal conhecimento só pode ser conseguido através de uma formação sólida e de nível superior que contemple a abrangência e complexidade do conhecimento profissional necessário para se ser professor e que promova uma visão de ensino que, para além da vertente técnica, reconhece a natureza dinâmica, problemática, complexa e sofisticada da profissão (Loughran & Menter, 2019) e a sua dimensão intelectual, cultural e contextual (Cochran-Smith, 2004).


Tal entendimento requer a consideração do continuum da formação – formação inicial, indução e formação contínua – reconhecendo a necessidade de investir na profissão e no desenvolvimento profissional dos professores numa perspetiva continuada e sistémica. Entre outros aspetos, e à luz dos sistemas bem-sucedidos, de que são exemplo a Finlândia, Singapura e Canadá, urge atender i) ao recrutamento dos candidatos mais capazes e à necessidade de valorizar o estatuto socioeconómico bem como as condições de exercício da profissão; ii) à articulação entre a teoria e a prática da formação através do desenvolvimento de um currículo integrado e coerente que combina o trabalho curricular na universidade e a prática clínica de qualidade em contextos onde esta se evidencia; iii) à construção de referentes profissionais para analisar e avaliar o ensino na sala de aula articulando-o com a aprendizagem dos alunos; iv) ao estabelecimento de sistemas de apoio (indução) aos novos professores enquanto extensões lógicas da formação inicial; v) ao desenvolvimento de oportunidades de desenvolvimento profissional que potenciem o trabalho colaborativo e a articulação entre a universidade e a escola; vi) ao investimento na profissão através da partilha de conhecimento e de investigação (Darling-Hammond, & Lieberman, 2012; Darling-Hammond, 2017).


A formação de professores constitui um problema de política, mas é também um problema político (Cochran-Smith, 2004), sendo, portanto, essencial questionar lógicas dominantes e modos de organização, sobretudo se representam um retrocesso face à experiência e conhecimento científico acumulado neste domínio. O exemplo mais paradigmático é o caso de Inglaterra que conheceu um movimento de ataque à formação de professores ao longo das duas últimas décadas (Newman, 2022), com a passagem da formação para as escolas, com a redução do papel das universidades e com a expansão do Teach First como percurso alternativo para a entrada no ensino, na senda do Teach for All nos EUA, com as consequências conhecidas do ponto de vista da desprofissionalização e desqualificação dos professores. Em sentido contrário, a aposta numa formação sólida, de nível superior e baseada na investigação é visível em países como a Finlândia e, mais recentemente, a Noruega.


A investigação demonstrou a relevância da qualidade da formação, apontando para uma avaliação mais positiva e para uma ação mais eficaz por parte dos professores que dela beneficiaram (Darling-Hammond, 2000). Se a formação de professores pode ser melhorada, tal movimento não pode ser feito à custa da redução da componente de formação educacional geral nem da sua passagem para a escola, o que configuraria o reforço de um paradigma de racionalidade técnica e instrumental contrário à formação de profissionais reflexivos e capazes de investigar a prática. Neste sentido, torna-se necessário investir na formação enquanto espaço de transformação, assumindo a pertinência da componente investigativa, do envolvimento dos stakeholders, da integração das várias componentes do currículo de formação e da sua articulação com os contextos de prática e ainda da dimensão ética, social, cultural e política do ensino (Flores, 2016, 2018; Flores & Menter, 2021). É fundamental revisitar o desenho curricular e organizativo da formação de professores à luz do perfil complexo e exigente que se pretende desenvolver e que é reconhecido como necessário para responder aos desafios e exigências da profissão. Mas é também crucial investir na melhoria das condições de trabalho dos professores cooperantes, na explicitação e valorização do seu estatuto e da sua função, na articulação entre escola e instituição de ensino superior e na criação de um terceiro espaço (Zeichner, 2010) que potencie o fortalecimento do profissionalismo docente e a consolidação da formação docente. A profissão docente encontra-se numa situação crítica que requer respostas concertadas e urgentes, o que claramente tem de passar pelo desenvolvimento de medidas que concorram para aumentar a sua atratividade e pelo investimento numa formação de qualidade assente na investigação. Os centros de investigação veem com preocupação a proposta de alteração da formação inicial de professores apresentada no documento do ME e manifestam disponibilidade e abertura para debater possíveis soluções à luz da investigação que vem sendo produzida neste domínio no sentido de garantir a sua qualidade e consolidação. Qualquer política pública neste âmbito deverá implicar uma ampla participação da comunidade das ciências da educação.


Conselho dos Centros de Ciências e Políticas de Educação:
CI&DEI – Centro de Estudos em Educação e Inovação
CeiED – Centro de Estudos Interdisciplinares em Educação e Desenvolvimento
CIDTFF – Centro de Investigação Didática e Tecnologia na Formação de Formadores
CIEP – Centro de Investigação em Educação e Psicologia
CIEC – Centro de Investigação em Estudos da Criança
CIPES – Centro de Investigação em Políticas do Ensino Superior
inED – Centro de Investigação & Inovação em Educação
CIIE – Centro de Investigação e Intervenção Educativas
CIE-ISPA – Centro de Investigação em Educação
CIE-UMa – Centro de Investigação em Educação
CIEd – Centro de Investigação em Educação
CIEB – Centro de Investigação em Educação Básica
CEAD – Centro de Investigação em Educação de Adultos e Intervenção Comunitária
CIEQV – Centro de Investigação em Qualidade de Vida
LE@D – Laboratório de Educação a Distância e Elearning
UIDEF – Unidade de Investigação e Desenvolvimento em Educação e Formação

Referências:
Cochran-Smith, M. (2004). Editorial. The problem of teacher education. Journal of Teacher Education, 55(4), 295-299.
Darling-Hammond, L. (2000). How Teacher Education matters. Journal of Teacher Education, 51 (3), 166-173.
Darling-Hammond, L. (2017). Teacher education around the world: What can we learn from international practice?. European Journal of Teacher Education, 40(3), 291-309.
Darling-Hammond, L., & Lieberman, A. (Eds.). (2012). Teacher education around the world. Changing policies and practices. London: Routledge.
Flores, M. A. (2016) Teacher Education Curriculum. In J. Loughran & M. L. Hamilton (Eds.), International Handbook of Teacher Education (pp. 187-230). Dordrecht: Springer Press.
Flores, M. A. (2018) Linking teaching and research in initial teacher education: knowledge mobilisation and research-informed practice. Journal of Education for Teaching, 44(5), 621-636.
Loughran, J., & Menter, I. (2019) The essence of being a teacher educator and why it matters. Asia-Pacific Journal of Teacher Education, 47(3), 216-229.
Loughran, J., S. Keast, & R. Cooper. (2016). Pedagogical reasoning in teacher education. In J. Loughran and M. L. Hamilton (Eds.), International Handbook of Teacher Education (pp. 387-421). Dordrecht: Springer Press.
Menter, I. & Flores, M. A. (2021) Connecting research and professionalism in teacher education. European Journal of Teacher Education, 44(1), 115-127.
Newman, S. (2022) Teacher Education under Attack. Journal of Education for Teaching, 41(1), 1-6.
Nóvoa, A. (2017). Firmar a posição como Professor, afirmar a profissão Docente. Cadernos de Pesquisa, 47(116), 1106-1133.
Zeichner, K. (2010). Rethinking the connections between campus courses and field experiences in college- and university-based teacher education. Journal of Teacher Education, 61(1-2), 89-99.

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